Interações, relações e vínculos afetivos nos processos de desenvolvimento nos primeiros anos de vida

Resumo: As interações sociais são objeto de profundo interesse no campo da Psicologia do Desenvolvimento Humano, especialmente quando se considera o desenvolvimento infantil desde uma perspectiva histórico-cultural e sócio-interacionista. Nestas perspectivas, o desenvolvimento infantil é entendido como um processo dinâmico, constituído nas ações e interações (e, simultaneamente, constituinte das ações e interações) da criança com seu meio físico, social e cultural. Os seres humanos se constituem na presença de e nas (inter)ações com outros com quem se encontra no seu curso de vida. Deste modo, o desenvolvimento não implica apenas um processo individual (orientado principalmente por um calendário maturativo), mas sim um processo multidimensional complexo, que se constitui em contextos históricos e culturais situados, imersos nas relações e vínculos com os outros sociais, e mediado por signos (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Silva, 2004; Rodriguez, 2012; Seidl-de-Moura & Ribas, 2004; Vygotski, 2000; Wallon, 1995). As formas de sociabilidade, a natureza das práticas de socialização e os significados que emergem em experiências compartilhadas, nas práticas interativas e relacionais, em diferentes contextos sociais, são elementos fundamentais para a compreensão dos processos de desenvolvimento, e em especial na infância.
Afinada com estes pressupostos, a perspectiva teórico-metodológico da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira et. al., 2004) ressalta como as interações e relações são, ao mesmo tempo, arena e motor dos processos de desenvolvimento. E como a pessoa em desenvolvimento faz parte de um sistema de relações, imerso em uma rede de elementos de natureza semiótica. Tais relações ocorrem em ambientes organizados pelo grupo social, no qual operam crenças, valores, representações e práticas culturais historicamente estabelecidas. Nestes contextos interativos, o binômio cuidar-educar desempenha um papel chave desde o nascimento, uma vez que o encontro da criança com o mundo passa por um outro; o outro conecta a criança com o mundo.
O bebê humano nasce em um universo permeado por signos – incluindo símbolos, sons, gestos, objetos e múltiplas linguagens –, sendo o outro social quem lhe interpreta e lhe apresenta este mundo. O outro é o guia (Rodriguez, 2012). São os parceiros sociais que organizam os espaços e cenários interativos; interpretam suas expressões; (re)produzem inúmeros gestos. São os outros e o grupo cultural que fornecem às crianças formas de perceber e organizar o mundo em que estão inseridos (Rossetti-Ferreira et. al., 2004; Rodriguez, 1999).
Ao usar determinado objeto na interação com os bebês ou crianças pequenas, os adultos empregam diferentes mediadores semióticos, como: expressões vocais, faciais e corporais; gestos; falas e variadas entonações de voz; turnos; mímicas; caretas; e outros recursos comunicativos que, além de atrair e fixar a atenção da criança, permitem que ela seja apresentada para um mundo que é cultural, que propõe usos convencionais e normativos para esses gestos e objetos. E é dentro dessas interações que, em determinado momento, a criança vai começar a apontar algo do mundo para o adulto (pointing gesture); isto é, o estabelecimento do triângulo interativo (adulto-criança-objeto) afeta diretamente o surgimento dos primeiros gestos e outros recursos comunicativos pré-verbais.
Mas não só as materialidades e objetos são apresentados, nomeados e significados às crianças, mas também suas próprias expressões emocionais. As emoções são os principais recursos comunicativos dos primeiros anos de vida. ​​Nas interações interpessoais, gradativamente, os bebês têm a oportunidade de perceber suas expressões (como choro, sorriso, olhar, balbucios, movimentos e gestos) como potentes recursos comunicativos capazes de captar a atenção do outro social. Este conjunto de expressões se desenvolve e assume um caráter comunicativo na medida em que é interpretado pelo outro, sendo esta interpretação dada nos parâmetros da cultura e das crenças presentes em determinado contexto (Amorim et. al., 2012). O choro do bebê, por exemplo, é profundamente social na medida em que funciona como uma chamada. E esta capacidade das crianças pequenas de se comunicar por meio de suas expressões emocionais, corporais e gestuais tem sido considerada como eixo fundamental para a compreensão do desenvolvimento infantil, em integração com as dimensões afetivas, sociais e cognitivas da ontogênese (Mendes & Seidl-de-Moura, 2009).
Discutindo esta inseparabilidade das dimensões cognitivas e afetivas, Van der Veer e Van Ijzendoorn (1988) ressaltam que, nos contextos de socialização infantil, o parceiro social não é apenas um agente cognitivo ou comunicativo, mas também fonte potencial de amor e proteção. Nesse sentido, os autores apontam três funções que as relações exercem no desenvolvimento social e cognitivo: primeiro, elas são contextos nos quais competências básicas emergem; segundo, relações são fontes que proporcionam à criança a segurança e as habilidades necessárias (além de ser o agente cognitivo, é uma potencial fonte de calor emocional e de sentimentos de segurança); e, terceiro, relações são precursoras de relações.
Hinde (1976) contribui para esta análise, destacando que a natureza de uma relação vai depender das suas interações constituintes. Ou seja, para descrever uma relação é necessário descrever as interações que ocorrem e como elas se configuram no tempo – suas frequências absolutas e relativas (quando ocorrem com relação umas às outras) e como elas afetam umas às outras. As diferenças e diversidades entre as relações vai depender das dimensões que constituem as interações, tais como: o conteúdo, a diversidade e a qualidade das interações; os padrões interativos; os níveis de perspectiva cognitivos e morais; dentre outros, como a reciprocidade, responsividade, complementaridade, coordenação de ações, convivência, afinidade e preferências.
Partindo destes componentes interacionais, Carvalho e Rubiano (2005) ressaltam alguns princípios da sociabilidade infantil, como: orientação da atenção (quando uma criança seleciona um outro social como foco de sua atenção, ou quando se estabelece atenção conjunta a um terceiro elemento); compartilhamento de significados (quando o parceiro interativo consegue entender o significado que a criança atribui a determinada coisa); e persistência de significados (pressupondo uma estabilidade na composição da relação, de modo que significados compartilhados persistem no tempo, possibilitando que uma ação, um gesto ou uma palavra evoquem uma atividade construída e partilhado entre aqueles parceiros).
Tomando o “compartilhar” (no sentido de “ter algo junto com outrem”) como um critério importante no estudo dos vínculos, Carvalho e Rubiano (2004), ressaltam como as interações co-reguladas (que implicam reciprocidade e mutualidade) são promotoras do compartilhamento, onde se cria signos compartilhados (sendo que objetos, atividades, espaços, movimentos, expressões, todos estes são passíveis de significação). Deste ângulo, o vínculo é concebido como um espaço privilegiado para a persistência de significados compartilhados, construídos e fortalecidos nas interações nas quais novas ações, atividades e sentidos se estabelecem. Assim, vínculos podem ser considerados, simultaneamente, produto e instrumento de construção de compartilhamentos (Carvalho & Rubiano, 2004). Neste conceito de compartilhamento encontra-se uma ponte, uma conexão entre aspectos cognitivos e afetivos, entre comunicação e emoção, entre social e cultural. Portanto, a afetividade, a cognição e a comunicação figuram como dimensões integradas que, para além dos componentes individuais, essencialmente implicam componentes relacionais; ou, como descrevem Carvalho e Rubiano (2004), envolvem um “espaço psicológico interindividual”.
A partir destes referenciais teórico-conceituais, ancorados em pressupostos sócio-interacionistas e histórico-culturais, e concebendo a interação social como “um espaço de inter-regulações no qual se constituem processos psicológicos” (Pedrosa & Carvalho, 2005, p. 432), despontam-se três premissas norteadoras para o presente projeto de pesquisa e seus subprojetos vinculados:
I) As interações, relações e vínculos são importantes unidades de análise nos estudos sobre desenvolvimento infantil. Para a compreensão dos processos de desenvolvimento, é importante ter como foco o encontro; as formas de sociabilidade e socialização infantil; a (inter)ação; a relação; o vínculo; o entre (e o entrelaçamento); os eventos e aspectos intersubjetivos que se estabelecem entre uma pessoa e outra, entre pessoas e um artefato cultural. Portanto, a unidade de análise consiste no processo social e relacional.
II) Para compreender as transformações e processos de desenvolvimento das crianças, é necessário considerar o parceiro social e seu sistema de valores, crenças e concepções. É relevante analisar como as variações culturais, ligadas às crenças, expectativas e valores dos cuidados, relacionam-se com o tipo de interação que o adulto estabelece com a criança (Mendes & Ramos, 2020). Desde o nascimento o adulto atribui intencionalidade comunicativa para as condutas das crianças. E tais interpretações são carregadas de significados culturalmente compartilhados, contribuindo para a inserção da criança no universo semiótico (Rossetti-Ferreira et. al., 2004; Rodriguez et. al., 2015). Por isso, evidencia-se a relevância de se compreender as percepções e concepções dos cuidadores acerca do desenvolvimento infantil, a fim de conhecer os pressupostos e crenças que embasam suas práticas nas interações com as crianças.
III) Em termos metodológicos, o desafio é traçar delineamentos que viabilizem a análise de categorias relacionais, de componentes interativos, que captem os processos interpessoais em movimento; e, principalmente, valorizando a inseparabilidade e integralidade das dimensões sociais, afetivas, comunicativas e cognitivas. O desafio metodológico é não perder de vista o que os processos de significações nas interações sociais reúnem afetividade e cognição, subjetividade e intersubjetividade, constituindo relações de complementaridade, integrando sentidos e significados (Souza, 2011).
Frente a estes princípios e abordagens teóricas, as questões gerais norteadoras do presente projeto são: como se estabelecem as interações, relações e vínculos afetivos de crianças com desenvolvimento típico e atípico em diferentes contextos de socialização e sociabilidade infantil? Mais especificamente: como se configura o campo interativo da criança em determinado contexto? com quem a criança pode interagir e como se dão essas interações (em termos de regulações e co-regulações)? E como estas interações, relações e vínculos afetivos constituem processos de desenvolvimento socioafetivo e cognitivo-comunicativo destas crianças e seus parceiros sociais? Mais especificamente: que mediadores semióticos se apresentam nestas interações e que expressões emocionais, corporais, gestuais e verbais emergem e se correlacionam?
Para responder estas questões, serão conduzidos estudos de natureza descritiva e exploratória, por meio de Revisões Sistemáticas de Literatura, Estudos de Casos Múltiplos e Estudos Observacionais (envolvendo observações sistemáticas de categorias definidas a priori e/ou a posteriori; e análises microgenéticas de episódios interativos selecionados - a fim de compreender o processo e as (trans)formações ocorridas nas formas de interagir). A perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações, a Pragmática do Objeto, e outras perspectivas ancoradas na abordagem histórico-cultural, irão guiar as discussões e análises dos dados.

Data de início: 12/07/2021
Prazo (meses): 36

Participantes:

Papelordem decrescente Nome
Coordenador GABRIELLA GARCIA MOURA
Pesquisador CÉLIA REGINA RANGEL NASCIMENTO
Transparência Pública
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