Comunicação afetiva na relação cão-ser humano

Resumo: 1. Introdução
As interações dos seres humanos com animais não humanos já estão presentes em figuras rupestres de milhares de anos atrás e em diversas (ou talvez todas) culturas com as quais temos contato (Cabral & Savalli, 2020; Resende, no prelo). A Etologia nos últimos 20 anos vem se dedicando a investigar o comportamento e a cognição dos cães domésticos (Canis familiaris), bem como suas origens e sua relação com o ser humano (Savalli & Albuquerque, 2017). A relação afetiva entre as duas espécies, tão próxima e duradoura, elicia comportamentos comunicativos, brincadeiras, comportamentos pró-sociais e até ciumentos nos cães. Todos esses comportamentos se manifestam no cotidiano da díade tutor-cão.
A importância do cão na sociedade humana é indiscutível (há mais lares brasileiros com cães do que com crianças, IBGE, 2015). O estudo conduzido durante o projeto “A relação afetiva entre o cão e o ser humano”, integrante do Centro de Pesquisa em Bem-Estar e Comportamento Humano (CPBEC), mostrou que, em uma amostra de 2054 respondentes, quase a totalidade dos respondentes (97,1%) consideravam seus cães como membros da família, sendo que aproximadamente metade dos cães dormia na cama ou no quarto, juntamente com seus tutores. Esses dados confirmam o grande impacto que a relação afetiva com os cães pode ter na vida e no bem-estar de ambos (Savalli & Ades, 2016). Como as duas espécies coabitam e dividem o mesmo ambiente, torna-se relevante compreender a dinâmica dessa relação e os fatores que nela interferem (Resende & Garcia, 2017).
A relação entre tutor e cão é relação duradoura e emocionalmente significativa e apresenta algumas semelhanças com o vínculo afetivo entre criança e cuidador e tem sido considerada como uma relação de apego sob a perspectiva da Teoria do Apego de John Bowlby (Bowlby, 1984, Nagasawa et al., 2009, Zilcha-Mano et al., 2011). No entanto, há controvérsias sobre esse paralelo entre a relação de apego criança-cuidador e o vínculo afetivo cão-tutor (Savalli & Mariti, 2020).
Diversos questionários respondidos por tutores buscam analisar o grau de apego/vínculo afetivo entre tutores e cães. O MDORS - Monash Dog Owner Relationship Scale (Dwyer, et al., 2006, Howell et al., 2017), por exemplo, se propõe a analisar a relação entre tutores e cães sob três aspectos: um deles reflete as atividades gerais de cuidado com o cão, um indicador do tempo e oportunidades que a díade tem para desenvolver uma relação próxima; o segundo aspecto reflete a proximidade emocional percebida pelo tutor, relacionada ao suporte social, vínculo, companhia e amor incondicional, e, por fim, um aspecto relacionado aos custos dessa relação para os tutores.
1.1. A comunicação entre cães e pessoas
Os cães desenvolveram habilidades sociocomunicativas específicas para interagir com humanos (Hare et al., 2002; Miklósi et al., 2003). A comunicação visual é crucial, com os cães usando o olhar e a posição corporal para transmitir mensagens (Gaunet, 2010; Savalli et al., 2014, 2016; Gaunet & Deputte, 2011). Diante de problemas insolúveis, os cães solicitam a cooperação humana através do olhar (Marshall-Pescini et al., 2009; Mendes et al., 2021). Eles são habilidosos na leitura do comportamento humano, seguindo gestos de apontar e monitorando a atenção das pessoas (Hare & Tomasello, 2005; Miklósi & Soproni, 2006; Gácsi et al., 2009, 2004; Virányi et al., 2004; Call et al., 2003).
A ontogênese influencia a comunicação na díade tutor-cão. O contato visual é moldado por interações diárias (Bentosela et al., 2008; Udell & Winne, 2008). Barrera et al. (2010) mostraram que a extinção do comportamento de olhar na ausência de recompensa foi mais lenta em cães de estimação do que em cães de abrigo, sugerindo que a experiência diária com recompensas intermitentes torna o comportamento mais resistente à extinção.
A comunicação vocal também é importante. Humanos interpretam corretamente o estado afetivo dos cães a partir de suas vocalizações, e os cães respondem à linguagem humana, aprendendo palavras e combinando-as com ações (Kaminski et al., 2004; Pilley & Reid, 2011; Ramos & Ades, 2012; Pilley, 2013). Os cães preferem uma entonação melódica semelhante à usada com bebês (Dog Direct Speech), que capta mais sua atenção (Jeannin et al., 2017; Ben-Aderet et al., 2017; Benjamin & Slocombe, 2018).
1.2. A brincadeira entre cães e pessoas
A interação humano-cão inclui sinais visuais, vocalizações, movimentos corporais e sincronismo de movimentos (Duranton et al., 2017, 2018). Estudo de Horváth, Dóka, & Miklósi (2008) mostrou que a forma de brincar dos tutores influencia os níveis de cortisol nos cães, reduzindo o estresse quando os tutores são mais soltos. Rooney, Bradshaw, & Robinson (2000) encontraram diferenças na brincadeira entre díades cão-cão e humano-cão, com menos competição por objetos entre cães e humanos.
Horowitz & Hecht (2016) usaram ciência cidadã para investigar a brincadeira, encontrando associações entre afetos positivos e a quantidade de contato físico e proximidade na brincadeira. Palagi, Nicotra e Cordoni (2015) mostraram que cães mimetizam comportamentos dos parceiros de brincadeira, o que regula socialmente o fenômeno e está ligado à empatia.
1.3. Empatia e comportamentos pró-sociais em cães
A empatia envolve a tomada de perspectiva do outro, requerendo habilidades de percepção e reação aos estados emocionais do outro, observadas em cães (Muller et al., 2015; Albuquerque et al., 2016, 2018). O contágio emocional, uma forma básica de empatia, é um sincronismo automático entre indivíduos. Estudos mostram que cães respondem ao bocejo e a sons emocionais, com alterações no comportamento e níveis de cortisol (Joly-Mascheroni et al., 2008; Yong & Ruffman, 2014; Huber et al., 2017).
Custance e Mayer (2012) observaram que cães se aproximam de pessoas chorando, indicando uma resposta empática. Há evidências de que cães oferecem consolo a humanos em sofrimento, mas é necessário entender como fatores como convivência, temperamento e vínculo afetivo influenciam esses comportamentos pró-sociais.
1.4. O comportamento ciumento em cães
A existência de ciúme em animais não humanos é controversa, com muitos autores argumentando que apenas emoções primárias podem ser compartilhadas entre animais (Morris et al., 2008; Lewis, 2002). No entanto, questionários indicam que o ciúme é atribuído aos animais tanto quanto emoções primárias (Martens et al., 2016; Su et al., 2018). Relatos de comportamento ciumento em cães, especialmente quando seus tutores dão atenção a outros cães, sugerem paralelos com o ciúme humano, mas a ausência de autoconsciência em cães levanta questões sobre essa interpretação (Abdai et al., 2018; Harris & Prouvost, 2014).
2. Métodos
Díades tutor-cão
A amostra desde projeto será selecionada a partir do banco de dados de voluntários do Laboratório de Cães do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, portanto, devido à disponibilidade de voluntários, a coleta de dados acontecerá na cidade de São Paulo, e não na cidade da Instituição sede. Recrutaremos, aleatoriamente, 5 díades tutor-cão para participação dos pilotos e descrição das atividades diárias e 40 díades tutor-cão para participar da coleta de dados nas visitas (considerando que podem ocorrer perdas de dados por diversas razões, esperamos ter uma amostra final de aproximadamente 30 díades). As visitas previstas para a segunda etapa do projeto (descrita abaixo) serão agendadas de acordo com a disponibilidade dos tutores.
Procedimentos
O projeto proposto seguirá etapas. A primeira etapa incluirá 5 díades tutor-cão, que descreverão um diário de atividades com os cães por dois dias. A partir desses diários será estruturado um questionário para avaliar o grau de convivência do tutor e do cão. A primeira etapa inclui também a realização de pilotos para calibração dos procedimentos para as tarefas a filmadas. A tarefa de brincadeira será livre, porém as tarefas comunicativas e de empatia (descritas mais detalhadamente abaixo) serão adaptadas para o ambiente de desenvolvimento do cão, sua casa. Ainda na primeira etapa, será feita a adaptação e validação estatística do questionário MDORS. A segunda etapa do projeto incluirá a coleta de dados em si, durante as visitas nas casas de 40 díades tutor-cão para aplicar os questionários (PANAS, CBARQ e MDORS, grau de convivência) e realizar as filmagens das tarefas. Por fim, na terceira etapa cada subprojeto analisará os dados coletados na visita para atingir os objetivos específicos.
Na primeira etapa do projeto, para definir um questionário para aferir sobre o grau de convivência entre tutor e cão, será inicialmente conduzido um piloto com 5 tutores que farão um diário de suas atividades, registrando todos os momentos de interação com seus cães e o tempo da interação, por dois dias. Esses diários fornecerão informações que darão subsídios para construir as perguntas do questionário que terá o objetivo de propor um escore para representar o grau de convivência entre tutor e cão.
Para o estudo da brincadeira este projeto contará com os conhecimentos produzidos no mestrado da aluna Ana Flávia de Freitas Gutierres (orientada pela professora Briseida Resende). Essa pesquisa fará um estudo qualitativo da brincadeira entre cães e tutores utilizando a análise microgenética das videogravações (Pedrosa & Carvalho, 2005, Lira & Pedrosa, 2019), a fim de compreender as regulações recíprocas dessas interações. Tal método consiste em observar as sessões de interação repetidas vezes para encontrar as atividades em conjunto da díade. A partir desse estudo, que está sendo conduzido em uma amostra diferente da amostra deste projeto (CAAE: 36486820.6.0000.5561, número do parecer: 4.279.783) definiremos quais os comportamentos serão registrados nas filmagens de brincadeira deste projeto.
Ainda na primeira etapa do projeto, o questionário MDORS será adaptado e validado estatisticamente no contexto da pesquisa de doutorado de Francisco G. de S. Cabral (orientado pela professora Carine Savalli). Esta pesquisa de doutorado está sendo conduzida em uma amostra diferente da amostra deste projeto, já aprovada por comitê de ética (CAAE: 37042920.2.0000.5561, número do parecer: 4.321.038), e, a partir de seus resultados, teremos o instrumento MDORS validado para ser utilizado na amostra deste projeto.
Os comportamentos dos cães especialmente direção do olhar e postura corporal, durante as tarefas de brincadeira, comunicativas e de empatia serão registrados quanto à duração e frequência por meio do software SOLOMON CODER, especializado em registro comportamental, (Copyright 2006-2019 by András Péter, de distribuição gratuita). O registro minucioso dos comportamentos dos cães quadro-a-quadro, a partir das filmagens, despende tempo, e, portanto, impõe uma limitação para o tamanho amostral. No entanto, a quantidade de informação gerada a partir das filmagens permitirá a proposição de outras pesquisas para além da que está sendo proposta neste primeiro momento.
As associações entre o grau de convivência entre cão e tutor, o temperamento do cão e o vínculo afetivo do tutor ao cão, e os comportamentos exibidos pelo cão durante as tarefas de brincadeira, comunicativas e de empatia serão analisadas por meio de modelos estatísticos como os Modelos Lineares Generalizados (GLM – Generalized Linear Models) no software IBM SPSS
Statistics.

Data de início: 01/02/2024
Prazo (meses): 60

Participantes:

Papelordem decrescente Nome
Vice-Coordenador ROSANA SUEMI TOKUMARU
Transparência Pública
Acesso à informação

© 2013 Universidade Federal do Espírito Santo. Todos os direitos reservados.
Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras, Vitória - ES | CEP 29075-910